11/24/2008




Narciso, na mitologia grega, ao olhar-se no lago, descobriu sua beleza e ficou fascinado. Mas, se pensarmos em Sócrates, que pregava o aforismo "conhece-te a ti mesmo", inscrito no templo de Apolo em Delfos, estaria Narciso apenas tentando se conhecer? A mitologia se inspirou em Sócrates, ou foi o inverso? O espelho mostra-nos o próprio rosto, mas, os olhos nele inseridos, mostrarão nossa alma?
Caravaggio retrata Narciso fiel à mitologia, extasiado, olhando-se no lago; Dali desestrutura a figura e adiciona símbolos criando um ambiente surreal; Borges, no poema "Borges e Eu", contrapõe a figura do Borges pessoa, cidadão comum, ao Borges escritor.
Em todas as visões, o que se coloca é a relação entre aquilo que se vê e aquilo que se é. O narciso do lago se extasia com sua beleza, o narciso de Dali vê o que o seu rosto não mostra, e o narciso de Borges vê o que os outros não vêem.
O narciso de Sócrates é o caminho da sabedoria. O narciso da mitologia, atento apenas à aparência, morre. Em oposição, o de Borges tenta não se iludir, mas seu fim é ser absorvido pela própria imagem feita para os outros, pelos outros. O narciso de Dali se despedaça, se distorce, se duplica, se desfigura para se conhecer, sobram apenas ossos irreconhecíveis. Em Dali não se sabe mais o que é real e o que é sonho, o que é vida e o que é morte. Mas sobrevive a esperança na flor que, teimosa, renasce.
E eu, como sou? De onde Narciso tirou a percepção de que é belo? - ela nasceu com ele?
A foto mostra como eu era, jovem, tranqüilo, mas posso nela antever o que sou? quem é esse que povoa essa foto, qual a idade dela, ou ela não tem idade? Se fotografia é um espelho dotado de memória, que memórias ela me traz? Se eu pudesse dialogar com ela, o eu hoje e o eu ontem, o que um diria do outro? O eu ontem, ao saber o que viria a ser, continuaria a ser? O que está lá que não está mais aqui? O corpo é outro, mas há algo que seja imaterial, algo atemporal, algo imutável? Conhecer cada resposta não é possível e na verdade não importa, o que importa é questionar-se. Responder é assassinar a pergunta. Com esta se descortinam possibilidades, se abre o caminho para a transformação de si mesmo, para a libertação das amarras de ser, seja lá o que for, para estar sendo, seja lá o que for.
Talvez não exista a identidade e esta não seja mais do que memórias vistas e revistas ao passar do tempo, sempre com novas cenas que se sobrepõem às antigas, amontoando-se como camadas geológicas que se compactam, se distorcem, se misturam, produzindo ao final uma imagem de solidez que leva à ilusão de individualidade, unidade, identidade.
A matéria muda, o espírito muda, matéria e espírito, de mesmo modo que matéria e energia, são uma coisa só, apenas duas formas de ver, duas formas de se apresentar.
Olho a foto, gosto dela, é com recuperar parte de mim, um orgulho de ter sido isso. Ela reflete um rosto, sonhos, angústias, medos, desejos, expectativas, lembranças. Sempre gostei de arqueologia, é recuperar o que se dava por perdido. Ao vê-la, pode-se evocar o passado, rever os sonhos de outrora: realizar-se na vida profissional, ter uma família, viajar. Hoje eles foram realizados ou esquecidos, superados. Outros sonhos os substituem, sem sonhos não há vida. Que bom seria poder ver hoje uma foto tirada no futuro e nela ver os sonhos que virão.
O tempo é um mistério, passado, presente, futuro, muda o interior, muda o exterior, a cada instante sou outro, cada ato me transforma. Ao agir, o mais importante não é o que resulta de prático, de útil, em cada ato, o que importa é no que me transformo. Conforme o ato poderei vir a ser uma pessoa melhor, pior, mais alegre, mais triste, tudo dependerá de mim ao escolher como agir.
Numa certa medida, de uma certa forma, continuamente me olho no lago, me revolvo, me despedaço, me escondo atrás de mim mesmo. Percebo que há múltiplos eus: trabalhador; amante; amigo; poeta; um ser anônimo, até para mim mesmo. Me perco no labirinto tentando descobrir o que sou, o que penso que sou, o que penso que os outros acham que sou. Não encontro resposta, mas, ao procurar, me conheço melhor.
Enquanto meu inconsciente se alterna entre eu ovo e eu cadáver, a vida segue entre narcisos.
Valter Hernandez

11/17/2008

Despertencida

Despertencida

O que sobrou da manhã luminosa
inundada de azul
onde
entrevi nos verdes olhos
certa tristeza?
O dorso coberto pelo colete
escondia seus pelos

Convidado à aproximação:

Olhavas de lado e
um medo molhado regava teu sorriso
Com visão prejudicada pelos
prédios, esbarrando no céu
onde antes habitavam casas,

Esmoreci.

Ando tão esquecida
da tua boca
Que fiquei despertencida...
Minhas pálpebras olham pelas frestas
da janela à sua procura


Perdi a noção do tempo
Para mim, tudo era ontem
Daqui a pouco,
Amanhã cedo


Eloisa Zeitlin
l

11/14/2008

Dançando comigo mesmo



E o sol ergueu-se mais uma vez por entre os montes rochosos e as planícies sedimentares. Estávamos todos prontos para mais um cotidiano. Todos os castelos abrigavam todos os seres e estes guardavam seus afagos em pequenos relicários de sentimentos dispensáveis naquele, neste cotidiano. Recomeçaríamos, em toda nossa cumplicidade, a caminhada pelos campos cinzas da impassibilidade. Era necessário vestir-se. Minha armadura estava à espera, o peitoral forjado em aço protegeria-me de eventuais investidas simpáticas. O capuz serviria-me como deflector de quaisquer sentimentalidades. Lá fora, centenas e milhares de cavaleiros consentiriam num mesmo ritual, dirigiríamos-nos a um único ponto, por isso fazer-ia-se necessário manter a distância.

Pelos caminhos citadinos, que aqui se impõem sobre os destinos, a massa metálica seguiria uniforme, redimensionando milhares de milhas em poucos metros. Cada qual em sua introspecção programada, impenetrável. Os escudos pesados impugnariam os olhares, criando um breu sob a luz do sol. Vez ou outra a escuridão seria quebrada pela nudeza das crianças, pelo carisma dos idosos ou ainda pela intromissão dos desorientados. Momentos raros e passageiros, que esvairiam-se no abrir e fechar das portas, estas também metálicas. Tudo estaria no seu devido lugar impróprio, milhares de corpos unidos pela distância, milhões de pensamentos separados pela proximidade. Num baile repleto, seguiríamos dançado, cada cruzado, consigo mesmo.

Por que hoje então, haveria de ser diferente? Por que hoje pestanejo em fechar este relicário?


Porque hoje o sol ergueu-se um tanto mais demorado. Porque hoje, algo introspectivo e inexplicável fez crer que estas vestes estão muito pesadas. Hoje o espelho refletiu um outro a quem não conheço, mas ainda assim era a minha face, desnuda. Talvez fosse você. Hoje sairei em carne crua. Porque uma intuição, quase dispersa, me diz que não há metal que resista ao tato nu. Hoje estarei despido, porque o sol sucumbirá por entre os montes rochosos e as planícies sedimentares e, neste extremo momento, eu não quero estar dançando comigo mesmo.



11/12/2008

Edifício Master

Edifício Master Estréia amanhã, no Brasil, "Edifício Master", documentário de Eduardo Coutinho, o autor de "Santo Forte" e "Babilônia 2000".O Master é um prédio de Copacabana, a uma quadra da praia. São 276 conjugados (23 por andar), em que vivem mais ou menos 500 pessoas (donos ou inquilinos). O aluguel de um apartamento é por volta de R$ 350, com despesas de condomínio de R$ 135.Coutinho e sua equipe ficaram no prédio por um mês, filmando entrevistas. Na montagem final, aparecem os depoimentos de 37 moradores.Antes de assistir ao filme, ao anoitecer, contemple o tabuleiro das janelas acesas na fachada de um grande prédio. A luz trêmula dos televisores parece sugerir uma banalidade comum. Alguém dirá: são vidas massificadas (sempre subentendendo: à diferença da minha, não é?). Mas as sombras que se movimentam atrás das cortinas falam de existências concretas: quem são nossos vizinhos?Fique mais um pouco na frente do prédio e considere o paradoxo da modernidade urbana: uma extrema proximidade física, vidas que se tecem a poucos metros umas das outras, atrás de uma parede ou de um piso, mas que mal se cruzam. De maneira inédita na história e na variedade das culturas, nós acreditamos que todos são nossos irmãos ou semelhantes. Mas não conseguimos bem explicar por quê e no quê. Os prédios em que moramos são aldeias paradoxais: compartilhamos cheiros, barulhos, gritos, sem por isso saber o que define a nossa tribo; ou seja, sem saber o que temos em comum ou mesmo sem admitir que tenhamos algo em comum. Até porque, em geral, preferimos curtir a ilusão de nossa unicidade absoluta.Qual é o comum denominador de humanidade que reconhecemos em nossos vizinhos e semelhantes? Como essa humanidade comum se concilia com a presunção de nossa unicidade? O filme de Coutinho responde. Graças a ele, descobrimos que nossos vizinhos não são exóticos; ao contrário, são banais, mas, apesar disso, suas vidas são tão únicas quanto as nossas.Em suma, somos todos membros da mesma tribo moderna justamente por isso: porque somos todos únicos. No edifício Master, nos sentiríamos em casa, não apesar da diversidade das escolhas e dos destinos, mas por causa dessa diversidade.Vera viveu no Master a vida toda, mas teve uma existência cigana, porque passou por 28 apartamentos diferentes: sem deixar o edifício, viu suicídios, assassinatos, mortes, cafetinas e prostitutas. Esther, que foi costureira "da alta sociedade", começou um dia a tirar retratos e ficou encantada consigo mesma. Renata fugiu da mãe que a forçou a abortar e, agora, ela tem um namorado nos EUA. Nadir tem oito netos, toca e canta. Carlos e Maria Regina se amam, mas ele tem mania de olhar para outras mulheres, e ela quis se jogar pela janela. Três jovens querem ser músicos. Oswaldo e Geicy são felizes: encontraram-se pelos classificados, começaram a morar juntos três dias depois e são um casal há 13 anos. Daniela, que viveu em Nova Orleans, EUA, luta contra seu medo de encarar a vida escrevendo poesias em inglês e pintando: ela mostra um quadro intitulado "A Floresta de meu Desespero". Roberto, camelô e aposentado, ainda chora a morte de seus pais. Alessandra sustenta a si mesma e a sua filha fazendo programas: é tão bonita e corajosa que, depois do filme, aposto que receberá propostas de casamento pelo correio. Jasson compôs e canta samba. Fernando José foi ator em mais de 30 novelas e 62 filmes. Cristina foi exilada no Master, junto com o filhinho, pelo pai de classe média alta, revoltado pela gravidez precoce da filha. Maria Pia, espanhola e doméstica, já visitou duas vezes a Europa. Suze foi dançarina e cantora no Japão. Paulo Mata jogou futebol no México, na França, nos EUA e na Venezuela, foi treinador na Arábia Saudita e no Sudão e agora compõe e canta. Eugênia é poeta. E por aí vai.O Master é um edifício de pequena classe média. Seus moradores são, socialmente, de pequena classe média, mas eles não têm nada de médio e nada de pequeno: são todos heróis. Pela arte de Coutinho, suas vidas, milagrosamente, revelam uma grandiosidade épica.Henrique emigrou para os EUA com 17 anos. Vive de sua aposentadoria americana, sozinho e modestamente. O que ele conseguiu já deu para os filhos, que residem todos nos EUA. Recentemente, caiu e teve um derrame. Recuperado, canta para nós "My Way" de Sinatra, com entusiasmo e braço erguido. Ao escutá-lo e vê-lo cantar naquele pequeno conjugado de Copacabana, longe de qualquer estereótipo do sucesso, poderíamos perguntar: mas qual é seu triunfo, qual o seu orgulho? A letra da música de Sinatra responde: Henrique canta e se comove porque viveu "do jeito que quis". Orgulha-se e celebra a grandeza de ter vivido e de viver. Só isso, mas não conheço postura mais digna.P.S. Uma sugestão: se você gostar do filme de Coutinho, ou seja, se você achar graça e grandeza nos heróis do apartamento ao lado e do andar de cima, leia ou volte a ler o livro de Georges Perec, "A Vida - Modo de Usar".

Contardo Caligaris
Fonte: contardocalligaris.blogspot.com/2002/11/edifcio-master.html

11/07/2008

ALGIBEIRA

“Derrama seu coração feito água
Diante da face do Senhor “


Algibeira

Esse dizer líquido
Lido no carro de vidro
Transpassou minha alma
Rodeando-me de arrepios

Calculo a temperatura do vento
Cubro os pés e a cabeça
Recito Gregório Delgado
Fico fora do mapa

Quero a face oculta
Aquela que deixei na algibeira
A oculta de mim mesma
À sombra da macieira

Agora depois da confissão
Redimida do original pecado
Fecho o livro na estante
Ponho a roupa no varal.

Dúvidas, entre eu e você

Duvido que você não sonhe. Duvido que nunca tenha acreditado nos seus sonhos.
Duvido que nunca tenha tido vontade de dizer: "- Eu te amo". Duvido que tenha dito todas as vezes em que teve vontade.
Duvido que não ame.
Duvido que tenha dado ouvidos a todos os conselhos dos seus pais. Tenho certeza que se arrepende disso.
Duvido que não tenha bons amigos. Preserve-os.
Duvido que nunca quisestes ter um filho. Se já o teve, duvido que não esteja grato(a).
Duvido que nunca tenha quebrado um regra que você mesmo se impôs. Parabéns.
Duvido que não goste de sorvete. Porque eu amo.
Duvido que nunca tenha perdido a paciência. Duvido que não a tenha encontrado.
Duvido que você nunca tenha duvidado de si mesmo. Duvido que não tenha superado.
Duvido que nunca tenha ouvido alguém dizer: “duvide de tudo e de todos”. Duvido que tenha seguido este conselho estúpido.
Duvido que, ao ler este texto, você não imaginou dezenas de outras dúvidas que aqui podiam ser listadas e se perguntou se eu concordaria com elas. Tenha certeza que sim!