11/14/2008

Dançando comigo mesmo



E o sol ergueu-se mais uma vez por entre os montes rochosos e as planícies sedimentares. Estávamos todos prontos para mais um cotidiano. Todos os castelos abrigavam todos os seres e estes guardavam seus afagos em pequenos relicários de sentimentos dispensáveis naquele, neste cotidiano. Recomeçaríamos, em toda nossa cumplicidade, a caminhada pelos campos cinzas da impassibilidade. Era necessário vestir-se. Minha armadura estava à espera, o peitoral forjado em aço protegeria-me de eventuais investidas simpáticas. O capuz serviria-me como deflector de quaisquer sentimentalidades. Lá fora, centenas e milhares de cavaleiros consentiriam num mesmo ritual, dirigiríamos-nos a um único ponto, por isso fazer-ia-se necessário manter a distância.

Pelos caminhos citadinos, que aqui se impõem sobre os destinos, a massa metálica seguiria uniforme, redimensionando milhares de milhas em poucos metros. Cada qual em sua introspecção programada, impenetrável. Os escudos pesados impugnariam os olhares, criando um breu sob a luz do sol. Vez ou outra a escuridão seria quebrada pela nudeza das crianças, pelo carisma dos idosos ou ainda pela intromissão dos desorientados. Momentos raros e passageiros, que esvairiam-se no abrir e fechar das portas, estas também metálicas. Tudo estaria no seu devido lugar impróprio, milhares de corpos unidos pela distância, milhões de pensamentos separados pela proximidade. Num baile repleto, seguiríamos dançado, cada cruzado, consigo mesmo.

Por que hoje então, haveria de ser diferente? Por que hoje pestanejo em fechar este relicário?


Porque hoje o sol ergueu-se um tanto mais demorado. Porque hoje, algo introspectivo e inexplicável fez crer que estas vestes estão muito pesadas. Hoje o espelho refletiu um outro a quem não conheço, mas ainda assim era a minha face, desnuda. Talvez fosse você. Hoje sairei em carne crua. Porque uma intuição, quase dispersa, me diz que não há metal que resista ao tato nu. Hoje estarei despido, porque o sol sucumbirá por entre os montes rochosos e as planícies sedimentares e, neste extremo momento, eu não quero estar dançando comigo mesmo.



2 comentários:

Karen Kipnis disse...

Waaaau, Leo tic tac: você escreveu um belo texto, inspirado mesmo!
" Hoje sairei em carne crua..."

Beijo,
KK

eloisa zeitlin disse...

Léo, você não merece mesmo dançar sozinho!Bom é despir-se da armadura e sair em carne crua!!!
Quero mais...
Texto super poético, incita o leitor a pensar em como está saindo para o mundo.Vc não tem nada de tic-tac vc é o BIG BEN!!